Ao contrário de outras partes do mundo, a América Latina está livre de guerras. No entanto, é uma região atormentada pela desigualdade, crime, corrupção, tráfico de drogas e agitação social. A estabilidade política e instituições democráticas fortes são mais a exceção do que a regra.

A América do Sul, em particular, parece nunca parar de ir de um extremo ao outro, da esquerda à direita política e vice-versa, sem atender às demandas sociais e econômicas responsáveis ​​pelo movimento do pêndulo.

Tal instabilidade tornou difícil para o continente formar um bloco influente, apesar das estimativas de que representa coletivamente a quinta maior economia global.

No início desta semana, todos os 12 países sul-americanos, representados por 11 presidentes e o primeiro-ministro do Peru, se reuniram em Brasília para dar mais uma chance ao indescritível objetivo da integração continental. Liderando o esforço estava o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva.

“O que ele está tentando alcançar é a unidade da América do Sul”, disse-me o principal assessor de Lula, o ex-chanceler Celso Amorim.

“Acho que sempre foi importante, mas agora é ainda mais importante em um mundo progressivamente dividido em blocos. Acho que, num mundo como esse, mesmo um país como o Brasil — que é muito populoso e tem uma economia enorme — não é grande o suficiente sozinho.”

Mas enquanto Lula ainda é considerado o líder mais influente da região, muitos na cúpula de terça-feira não estavam dispostos a seguir seu conselho.

Lula esperava reviver a Unasul, bloco sul-americano que ajudou a criar 15 anos antes, durante seus dois primeiros mandatos como presidente. Mas disputas ideológicas acabaram convencendo mais da metade de seus países membros a abandonar a organização.

“É melhor não começar do zero”, disse Lula na cúpula desta semana, ao defender a reconvocação da Unasul.

Mas não conseguiu convencer todos os seus pares que, no final, optaram por montar um grupo com integrantes de cada país para trabalhar em um plano de integração regional nos próximos 120 dias.

Lula havia apelado aos líderes sul-americanos para que deixassem de lado suas diferenças ideológicas e se concentrassem em interesses comuns, incluindo crescimento econômico, produção de energia e proteção ambiental.

Mas sua decisão de receber o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, um dia antes da cúpula gerou críticas abertas. Em seu discurso, Lula descartou a imagem de uma Venezuela “antidemocrática” como uma “narrativa” promovida pelos países ocidentais e pela mídia.

Mas o presidente chileno, Gabriel Boric, disse que, como presidente de esquerda, discordava.

“Não é uma construção narrativa. É uma realidade. É sério”, disse Boric. Ele acrescentou que o respeito aos direitos humanos é “básico e importante” para o Chile, independentemente da ideologia de quem os viola.

Marco para Maduro

Para o presidente Maduro, o encontro foi um marco importante. Durante anos, ele esteve isolado de seus pares sul-americanos – Brasil, Colômbia, Chile, Peru e Argentina, por exemplo – depois que muitos optaram por não reconhecer sua reeleição em 2018, optando por apoiar um governo de oposição.

Durante horas de reuniões a portas fechadas na cúpula desta semana, Maduro enfrentou críticas diretas ao seu histórico de direitos humanos de pelo menos dois presidentes, mas não pegou a luva.

“Não temos nenhum problema em sentar para conversar com qualquer força política ou presidente em um diálogo respeitoso e tolerante de unidade na diversidade. Isso é o que tínhamos aqui”, disse Maduro ao final da reunião.

O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, seu homólogo argentino, Alberto Fernandez, e o chileno Boric – todos figuras de esquerda – estavam entre a maioria que concordou que em nenhum momento da história a América do Sul mostrou tanto potencial econômico.

É o lar das maiores reservas de cobre e do muito procurado lítio usado em baterias recarregáveis. A região também tem potencial para se tornar a maior produtora de hidrogênio verde e outras fontes de energia sustentável. E tem enormes reservas de água doce, florestas tropicais e uma população cada vez mais – embora não suficientemente – educada.

Mas as disparidades econômicas e políticas da América do Sul frustraram décadas de tentativas de criar uniões regionais. A Unasul não foi o único bloco a fracassar. O MERCOSUL – uma união entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai – também tem lutado em meio a disputas internas.

O que é preciso é mais pragmatismo, segundo alguns especialistas. E a atual crise de imigração na América do Sul pode ajudar a estimulá-la.

Mais de sete milhões de venezuelanos deixaram sua terra natal desde 2015, segundo as Nações Unidas. Se países como Chile, Peru, Equador e Colômbia quiserem repatriar venezuelanos indocumentados e instituir um sistema ordenado de migração legal, alguns observadores acreditam que precisarão da cooperação de Maduro.

Boric referiu-se à cooperação com a Venezuela para resolver a crise na fronteira Chile-Peru.

“Juntos, com os governos do Peru e da Venezuela, por meio de um diálogo com o ministro das Relações Exteriores da Venezuela, conseguimos resolver esta crise e permitir que um avião venezuelano devolvesse cidadãos daquele país à sua pátria”, disse Boric.

Seguindo o modelo da UE?

Amorim, assessor de Lula, apontou a União Européia como um modelo de como as nações sul-americanas podem proceder para a construção de um novo bloco, mesmo com diversidade de opiniões políticas.

“Você tem vários cargos políticos na Europa. Você tem governos de centro-direita. Você tem governos que se pode dizer que são ainda mais de direita do que de centro-direita. E você tem os governos de centro-esquerda”, disse Amorim. “E ainda assim, pelo menos em alguns assuntos, eles são capazes de falar – se não com uma única voz – pelo menos de forma coerente.”

O sonho de Lula de uma América do Sul unida, porém, ainda está longe do sucesso. Mas políticos como Amorim veem esperança no exemplo da Europa. Afinal, os 12 países da América do Sul são muito mais semelhantes cultural e linguisticamente do que os membros da União Européia.

“É claro que haverá visões diferentes”, disse Amorim sobre um possível bloco sul-americano. “Mas temos interesses comuns em muitos aspectos. Temos que trabalhar pelos nossos interesses de forma unificada. Porque assim a gente tem mais força.”

Há muito a ganhar e não há tempo a perder, explicou Lula na cúpula, ao se referir à longa história da América do Sul sob a sombra de poderosos poderes econômicos e políticos, que remonta aos primeiros dias do colonialismo.

“Não podemos esperar mais 500 anos nas margens”, alertou.

Fonte: www.aljazeera.com

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