Este artigo é uma resposta à pergunta de um leitor, que pode ser lida AQUI.

Em Anti-DühringFriedrich Engels escreve o seguinte sobre definições:

Do ponto de vista científico, todas as definições têm pouco valor. Para obter um conhecimento exaustivo do que é a vida, teríamos que percorrer todas as formas em que ela aparece, da mais baixa à mais elevada. Mas para o uso comum tais definições são muito convenientes e em alguns lugares não podem ser dispensadas; além disso, não podem causar danos, desde que as suas inevitáveis ​​deficiências não sejam esquecidas.1

Esta citação surge no contexto do ataque do capítulo à filosofia da natureza de Dühring. Especificamente, Engels quer apontar a inadequação, ou, por outras palavras, o carácter abstracto, da “definição” da vida. Para compreender esta perspectiva sobre as definições devemos compreender a distinção marxista entre o abstrato e o concreto, uma vez que é, propriamente falando, o caráter abstrato das definições que é problemático.

Hoje ouvimos a palavra abstrato e evocamos imagens de abstrações mentais, de generalizações que ocorrem em nossa mente e são um reflexo desconectado das coisas sensíveis do mundo.

Geralmente não é assim que a nossa tradição entende o “abstrato”. É claro que vemos um papel necessário para as abstrações mentais no processo de aquisição de conhecimento teórico. A teoria é, sempre, uma forma de abstração. Contudo, esta “abstracção” pode ela própria ser mais ou menos abstracta ou concreta – no sentido em que usamos especificamente as palavras.

Etimologicamente, o latim concreto refere-se àquilo que é misto, composto, fundido. Como afirmaram Marx e Hegel, o concreto é aquilo que contém muitas determinações.2 O concreto é a unidade que contém muitos, uma unidade de opostos. É o que há de mais complexo, o todo ou a totalidade. Quando dizemos, por exemplo, que Marx fornece um estudo concreto do modo de produção capitalista, queremos dizer que ele reconstruiu logicamente o modo de produção como um todo, de forma abrangente, com base na ascendência do seu germe (a mercadoria, o componente integral mais abstrato do todo) ao próprio todo. Na lógica de Hegel, a ideia absoluta permanece como a forma mais concreta do conceito, a última forma que o conceito assume, precisamente porque contém conscientemente em si as muitas determinações pelas quais passou para alcançar este momento máximo de concretude lógica.

Abstrato, em latim, refere-se àquilo que foi retirado, retirado, extraído, alienado ou isolado. É bastante evidente ver como isso funciona no pensamento abstrato… nas abstrações mentais abstratas. Como escreve Ilyenkov, “pensar abstratamente significa apenas pensar de forma desconexa, pensar numa propriedade individual de uma coisa sem compreender as suas ligações com outras propriedades, sem compreender o lugar e o papel desta propriedade na realidade”.3 Mas o abstrato não é simplesmente esta falha no pensamento desconectado, há também abstrações reais operando objetivamente no mundo, abstrações que podem ser compreendidas concretamente. Para Marx, por exemplo, isto é operativo na troca de mercadorias, onde a “forma-valor geral é a redução de todos os tipos de trabalho real ao seu caráter comum de ser trabalho humano em geral, de ser o dispêndio de força de trabalho humana”.4 Como você encontra nos primeiros quatro capítulos de Capital Vol. I, o valor de troca das mercadorias (que passa a dominar o seu valor de uso) é um reflexo do tempo de trabalho abstrato que foi investido nele. É uma métrica quantitativa do tempo de trabalho socialmente necessário para produzir uma mercadoria específica. Para que tal quantificação ocorra, atividades qualitativamente incomensuráveis ​​devem transmutar-se em atividades qualitativamente comensuráveis. O trabalho necessário para fazer um sapato e o trabalho necessário para fazer um casaco devem perder sua singularidade e obter uma forma abstrata na qual cada um seja comparável, como iguais qualitativamente, em termos de quantidade. Isto é um abstração real.5

Aquilo que é mais concreto, isto é, os “todos” ou “totalidades” a serem examinados, não pode ser estudado diretamente como todo. O concreto, em outras palavras, não pode ser um ponto de partida. Tratá-lo como tal limita você a se envolver com o que Marx chamou de “concreto imaginado”, um objeto concreto de estudo abordado através do pensamento abstrato.6 Em vez disso, para compreender o concreto concretamente, é necessária uma ascensão do abstrato ao concreto. Marx, por exemplo, não trata do modo de produção capitalista como um todo até o terceiro volume de Capitalisto é, até que ele tenha chegado ao todo através de um “processo de concentração”, através de uma ascensão ao concreto.7

Esta ascensão, portanto, requer inicialmente a descida do concreto (o todo) ao abstrato (seus componentes determinados). Existimos, por exemplo, dentro do modo de vida capitalista como uma realidade concreta. Mas para estudar tal realidade, Marx teve de descer da experiência imediata do concreto aos seus componentes abstratos, a fim de reconstruí-los logicamente através deste processo de ascensão ao concreto real. Descer do concreto ao abstrato é uma significa, momento intermediário de desaparecimento para a ascensão ao concreto. Ambos os movimentos, a descida do concreto imediato para o abstrato para reascender do abstrato para o concreto, reconstruindo assim o todo concreto na mente, são parte integrante do processo de abstração mental concreta… o antídoto para a unilateralidade e desconexão central para o pensamento abstrato. A primazia, porém, é dada à ascensão ao concreto. É, como observa Ilyenkov, “o principal e dominante [movement]determinando o peso e a importância do outro, o oposto [descending from the concrete to the abstract]”, que “emerge como um momento subordinado de desaparecimento do movimento geral”.8
Então, o que isso tem a ver com a visão das definições da tradição marxista?

Bem, as definições, embora úteis para fins práticos, prestam-se facilmente ao pensamento abstracto – isto é, à compreensão completamente errada do mundo. Não se pode fornecer definições de livros didáticos de uma frase para coisas complexas (concretas) no mundo. Mesmo para as coisas mais elementares do mundo, uma definição abstrata básica me diz muito pouco sobre tal coisa. Esta abordagem às definições tenta congelar o que quer que esteja a ser definido – removê-lo do seu contexto espaço-temporal, da teia de relações em que existe, e ignorar como tal contexto é o horizonte para a forma que a coisa definida assume. As definições, por outras palavras, forçam o nosso pensamento a ver as coisas de forma estática, desconectada e livre das contradições que permeiam a existência de uma coisa como uma entidade complexa e heterogénea.

Isto não significa que condenamos as definições. Afinal, eles são um componente integral da comunicação. A vida social humana sem definições seria impossível. Mas significa que, ao participarmos na investigação científica (como Engels mencionou), ou, francamente, em qualquer outra actividade, não devemos tratar as definições como estas coisas puras e sacrossantas nas quais a realidade deve moldar-se (por exemplo, como a perspectiva do fetiche da pureza trata a ‘ideia’ pura, ou ‘definição’, do socialismo como algo que poderia ser usado para olhar para os países socialistas e dizer, ‘isso não é socialismo real porque não é uma representação precisa da ideia pura, ou definição, que existe em minha mente’). Deveríamos estar cientes do fato de que as coisas que as “definições” definem estão elas próprias em constante movimento, crivadas de contradições e necessariamente interligadas a uma série de outras coisas dentro de uma dada totalidade… todas elas devem ser apreendidas para que o fenômeno, atualmente capturado abstratamente por meio de uma definição, poderia ser entendido concretamente.

Posso, por exemplo, falar-vos sobre como o capitalismo é um sistema onde os proprietários do capital estão no poder sobre as forças produtivas e os aparelhos estatais (ideológicos e repressivos) da sociedade, e onde tal domínio é usado para perpetuar o processo de expansão do capital. acumulação enraizada na exploração do trabalho da classe trabalhadora. Esta, por exemplo, é uma “definição” um tanto útil. Mas poder-se-ia dizer que eles compreendem esta realidade concreta (esta forma “toda” de vida) concretamente com base em tal definição? Claro que não! Não é sem razão que o pensamento de Marx Capital permaneceu um projecto aberto, inacabado… o seu objecto de estudo estava ele próprio inacabado, desenvolvendo-se continuamente, obtendo maior concretude. Portanto, aqueles (como Marx e Engels) que tentam reconstruir concretamente o modo de vida como um todo por escrito, exigem uma abertura no seu projecto intelectual que reflita o dinamismo aberto do seu objecto de estudo. É por isso que o marxismo (materialismo dialético) é totalmente criativo. Ela mantém como realidade ontológica este desenvolvimento incessante do mundo e, portanto, compreende que para continuar a conhecê-lo concretamente (e, claro, para mudá-lo de uma forma revolucionária), o seu pensamento deve desenvolver-se criativamente com ele.


Carlos L. Garrido é instrutor de filosofia cubano-americana na Southern Illinois University, Carbondale. Ele é diretor do Midwestern Marx Institute e autor de O fetiche da pureza e a crise do marxismo ocidental (2023), Marxismo e a cosmovisão materialista dialética (2022), e o próximo Hegel, marxismo e dialética (2024). Ele escreveu para dezenas de publicações acadêmicas e populares em todo o mundo e dirige vários programas transmitidos ao vivo para o YouTube do Midwestern Marx Institute.

Notas:

  1. ↩ Friedrich Engels, Anti-Dühring (Pequim: Foreign Language Press, 2016), 81.
  2. ↩ GWF Hegel. Palestras sobre História da Filosofia Vol. 2. Londres: Routledge e Kegan Paul, 1974., pp. 13. Karl Marx. Planos de chão. Londres: Penguin Books, 1973., pp.
  3. ↩Evald Ilyenkov, A dialética do abstrato e do concreto no Capital de Marx (Delhi: Aakar Books, 2022), 27.
  4. ↩Karl Marx, Capital Vol I (Moscou: Editores Internacionais, 1974), 57.
  5. ↩ Isso é explorado no livro de Alfred Sohn-Rothel Trabalho Intelectual e Manualque antecipa o argumento de Richard Seaford em Dinheiro e a mente grega primitiva que a abstração real encontrada na introdução da moeda (mercadoria monetária, equivalente universal) em Mileto foi o que desencadeou o desenvolvimento da filosofia, isto é, abstrações concretas ideais sobre a questão do ser.
  6. ↩Marx, Planos de chão100,
  7. ↩Marx, Planos de chão100.
  8. ↩ Ilyenkov, A dialética do abstrato e do concreto139.


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Fonte: mronline.org

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