Em 25 de março, o governo brasileiro lançou uma campanha multifacetada para combater a “desinformação”, que inclui um site dedicado a identificar e desmascarar “notícias falsas”.

A iniciativa, vista por muitos como uma ferramenta para o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva deslegitimar as críticas que enfrenta sob o pretexto de “verificação de fatos”, levantou sérias preocupações sobre o excesso de governo, a liberdade de expressão e o futuro da frágil democracia brasileira.

“Não existe checagem de fatos do governo”, Christina Tardáliga, diretora sênior de programas do International Center for Journalists, tuitou em resposta à notícia da iniciativa. “Essa apropriação do termo é equivocada e ofensiva. O que o governo faz é propaganda.”

Embora as tentativas de um governo de se atribuir o árbitro do que é real e do que é falso sejam, sem dúvida, preocupantes em qualquer país, os riscos são especialmente graves no Brasil.

Isso porque, apesar de suas explosões rotineiras contra a prevalência da “desinformação”, os governos brasileiros – tanto de direita quanto de esquerda – têm um longo histórico de confiar no que só pode ser descrito como “notícias falsas” para promover suas agendas políticas.

O antecessor de extrema direita de Lula, Jair Bolsonaro, por exemplo, passou todo o seu mandato acusando seus críticos de espalhar “notícias falsas” enquanto disseminava desinformação sobre uma ampla gama de assuntos, desde COVID-19 e ciência das vacinas até corrupção e feminismo.

E Lula dificilmente é melhor. Assim como Bolsonaro, o presidente de esquerda também tem o hábito de fazer discursos apaixonados contra “notícias falsas” e espalhar desinformação para promover os interesses de seu governo quase ao mesmo tempo.

Apenas três dias antes de lançar sua campanha contra as “notícias falsas”, por exemplo, o presidente desencadeou uma onda de desinformação contra o senador e ex-juiz Sergio Moro, que já o havia mandado para a prisão.

Este ano, a Polícia Federal do Brasil lançou uma operação contra membros do poderoso cartel de drogas de São Paulo, o Primeiro Comando da Capital (PCC), por conspirar para assassinar Moro. Os investigadores disseram que receberam uma dica sobre o plano de assassinato de um ex-membro do PCC que atualmente está sob proteção de testemunhas e reuniram evidências que apoiam suas alegações ao vigiar secretamente os telefones e e-mails de membros ativos do cartel.

Ignorando o trabalho de sua própria força policial, no entanto, Lula sugeriu que o plano de assassinato provavelmente foi uma “armação” politicamente motivada por Moro. Enquanto Lula admitiu mais tarde que não tem provas para apoiar essa afirmação e pediu cautela, uma onda de abusos e condenações já foi desencadeada contra o ex-juiz. O episódio demonstrou claramente que Lula só se preocupa com a desinformação quando ela tem como alvo ele e seu governo.

A relação de Lula com as “notícias falsas” e a desinformação também não se limita a uma observação pontual com o objetivo de ferir um antigo adversário. O presidente tem um histórico estabelecido de usar dinheiro público para apoiar veículos de mídia que publicam desinformação que é benéfica para ele e seu Partido dos Trabalhadores (PT).

Hoje ainda existem inúmeros sites e canais de TV no Brasil que existem apenas para disseminar “fake news” pró-governo. Não há, é claro, nenhuma expectativa de que a produção desses veículos amigáveis ​​a Lula seja examinada pelo novo site de “verificação de fatos” do governo em breve.

Parece que, com sua nova iniciativa anti-desinformação, o governo Lula não só se deu a oportunidade de denunciar qualquer crítica ao seu trabalho como “notícias falsas”, mas também lançou as bases para a criação de fatos e verdades “oficiais” que poderiam levar ao silenciamento de vozes dissidentes, censura generalizada e, talvez mais crucialmente, erosão da confiança pública nas principais instituições independentes do Brasil.

Por exemplo, o PT de Lula está convencido ou vê como um “fato” indiscutível que a ex-presidente Dilma Rousseff, a sucessora escolhida a dedo por Lula após seu primeiro mandato, foi destituída do poder não por um processo legal de impeachment, mas por um golpe. Isso, claro, não é um “fato” aceito pelo sistema judiciário brasileiro, mas uma interpretação dos acontecimentos por um partido político.

O que acontece se a nova iniciativa do governo de “notícias falsas” decidir “verificar” uma alegação ou uma notícia relacionada à saída de Dilma Rousseff do poder? Os fatos “oficiais” que ela apresenta anularão a posição do STF sobre o assunto? O que os brasileiros farão com as discrepâncias entre os fatos aprovados pelo governo e as decisões do Supremo Tribunal Federal? A questão também não se limita à política partidária. O que acontecerá quando os fatos sancionados pelo governo sobre uma pandemia ou desastre natural entrarem em conflito com os fatos não autorizados apresentados por um corpo científico?

Todos os governos se envolvem em propaganda e muitos usam meios de comunicação “amigáveis” para promover suas agendas. Porém, a tentativa do governo Lula de ditar, por meio de um órgão oficial, o que é real e o que é fake leva a manipulação a outro patamar.

E tudo isso enquanto a Câmara dos Deputados do Brasil finalmente parece pronta para aprovar um projeto de lei contra as “notícias falsas” que, segundo especialistas, podem ser usadas para sufocar a dissidência, censurar pontos de vista não aprovados pelo estado e dar aos políticos o direito de divulgar desinformação com impunidade.

Proposto pela primeira vez em 2020, o chamado Fake News Bill torna crime criar ou compartilhar conteúdo que supostamente represente um sério risco à “paz social ou à ordem econômica” sem definir esses termos. Também torna crime ser membro de um grupo on-line sabendo que sua atividade principal é o compartilhamento de mensagens difamatórias, mesmo que o membro não tenha criado ou compartilhado essas mensagens. Ela proíbe o uso de conteúdo “manipulado” com o objetivo de “ridicularizar” candidatos políticos, potencialmente pondo fim à sátira política legal no Brasil. Também coloca pressão legal sobre sites de mídia social para policiar o conteúdo compartilhado por seus usuários, introduzindo impedimentos que podem levar à censura ou silenciamento do discurso político. Ele ainda ordena que as redes sociais armazenem dados pessoais e históricos de conversas dos brasileiros que utilizam seus serviços.

Se o projeto de lei se tornar lei, os brasileiros podem enfrentar multas significativas ou até mesmo prisão por compartilhar comentários políticos inofensivos ou sátiras online. Ao mesmo tempo, porém, o projeto de lei dá total liberdade aos políticos para dizerem o que quiserem online sem quaisquer consequências – propõe remover o poder das redes sociais de banir ou suspender as contas de políticos por compartilhar conteúdo em violação de seus termos de serviço.

Este projeto de lei, juntamente com o novo serviço de “verificação de fatos” do governo, pode ser visto como os alicerces de um Ministério da Verdade brasileiro – o início de uma nova realidade de pesadelo em que o governo sozinho decide o que é a verdade e pune aqueles que se recusam a repeti-lo.

A luta contra as “notícias falsas” é importante. A ascensão das mídias sociais tornou a desinformação mais eficaz e fácil de espalhar. Mas a resposta do governo Lula a essa ameaça iminente está errada, e as soluções que propõe são provavelmente mais prejudiciais à democracia brasileira do que o próprio problema.

As opiniões expressas neste artigo são do próprio autor e não refletem necessariamente a posição editorial da Al Jazeera.

Fonte: www.aljazeera.com

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