A crise global da fome está a brilhar em todas as frentes, exacerbada pelas consequências da pandemia da COVID-19, pelas alterações climáticas e pela guerra na Ucrânia. As Nações Unidas confirmam que o progresso global em matéria de fome está letalmente inverso – com a Organização para a Alimentação e Agricultura a registar os piores números de insegurança alimentar em oito anos, e o objectivo global de acabar com a fome até 2030 parece fora de alcance.

Os preços dos alimentos estão estagnados em máximos históricos e os países de baixo rendimento enfrentam uma crise de dívida cada vez mais intensa. A Iniciativa dos Cereais do Mar Negro, que deveria garantir que as exportações de cereais da Ucrânia pudessem partir dos portos do país no Mar Negro, entrou em colapso, eliminando assim uma tábua de salvação para os países pobres importadores de alimentos. As cimeiras internacionais surgiram e desapareceram com uma escassez de ideias ou de ações sobre a fome.

O Brasil, uma superpotência agrícola e o maior exportador líquido de alimentos do mundo, também viu a fome e a pobreza aumentarem nos últimos anos, depois de a administração de Jair Bolsonaro ter desmantelado as políticas sociais, no meio de uma crise económica. Infelizmente, quase três em cada cinco famílias nem sempre têm o suficiente para comer, enquanto 33 milhões de pessoas (cerca de 15 por cento da população) passam fome.

Mas agora o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tomou posse em janeiro, intensificou-se. “Sou obcecado em combater a fome… Quero que os trabalhadores possam mais uma vez fazer três refeições por dia de forma digna e fornecer alimentação de qualidade para seus filhos”, disse ele ao lançar o Brasil Sem Fome. plano no final de agosto.

Indiscutivelmente o conjunto de políticas anti-fome mais abrangente que o mundo alguma vez viu, este plano ousado abre uma nova frente na guerra global contra a fome, precisamente quando a esperança começava a desvanecer-se.

O Brasil Sem Fome – assessorado pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), órgão que presido – tem objetivos abrangentes, mas simples. O seu objectivo é eliminar o Brasil do Mapa da Fome da ONU até 2030 – sem se nem mas – e garantir que mais de 95 por cento das famílias tenham segurança alimentar até ao final da década. Visa também melhorar o acesso a dietas saudáveis ​​e iniciar uma transição para uma agricultura sustentável.

Serão aproveitados cerca de 32 programas e políticas para atingir estes objectivos – desde transferências monetárias para famílias pobres até à compra de alimentos escolares saudáveis ​​a pequenos agricultores; desde pagamentos de transição agroecológica ao apoio às mulheres negras e rurais, ao reforço da proteção da Amazônia. Tudo isto estará no âmbito de um aparato concebido especificamente para trazer as vozes das pessoas marginalizadas e com insegurança alimentar para o processo de tomada de decisão.

Se este plano parece familiar, é porque é uma reformulação das políticas Fome Zero introduzidas pela primeira administração de Lula em 2003 – mas com uma dose extra de ambição na governação democrática e na produção sustentável de alimentos, atingindo os grupos mais marginalizados. .

Essa política original reduziu para metade a insegurança alimentar no Brasil e retirou o país do Mapa da Fome da ONU – tornando o Brasil um exemplo do desenvolvimento internacional. Ao vincular as transferências monetárias à frequência escolar e aos cuidados de saúde, ao alavancar as compras governamentais para apoiar os pequenos agricultores e, principalmente, ao construir órgãos de tomada de decisão inclusivos, o governo Lula teve sucesso onde muitos falharam.

Mas a subsequente demolição do aparelho anti-fome do Brasil foi igualmente dramática. Depois de chegar ao poder em 2019, o governo de extrema direita de Bolsonaro impôs uma austeridade opressiva e desmantelou as bases das políticas de segurança alimentar e nutricional. Os brasileiros ficaram sem rede de segurança, assim como o país foi atingido pela pandemia de COVID.

Isto ensina-nos uma lição fundamental: é possível reduzir significativamente os indicadores de pobreza e fome, mas se não mudarmos os determinantes estruturais das desigualdades, os resultados serão fácil e rapidamente desfeitos. Desta vez, o legado deve ser mais duradouro e profundo.

Isto exige que o plano vá ainda mais longe na implementação de acções concretas para abordar as causas profundas da fome – desigualdade e injustiça. Isso significa permitir o acesso à terra para os sem-terra, uma distribuição mais justa dos rendimentos e enfrentar a desigualdade de género e o racismo generalizados. Há também necessidade de profunda participação, mobilização e diálogo com a sociedade civil brasileira. A promessa de implementação coordenada em todos os ministérios e em todos os níveis do governo local, regional e federal será fundamental.

A fome não é homogênea; não se expressa uniformemente. Na verdade, deveríamos falar de muitas fomes: fome na cidade, no campo, nas crianças, nas mulheres, nos povos negros e indígenas, etc. É grande demais para ser enfrentada com apenas um programa ou departamento governamental fragmentado. Mas se o Brasil for capaz de levar a cabo estas políticas abrangentes e combater novamente a fome, o significado irá ressoar muito além das nossas fronteiras.

Na luta contra a fome, o mundo necessita drasticamente de respostas. Este plano poderá ser uma dose de esperança e um modelo global altamente significativo. Ainda restam muitos obstáculos, mas o Brasil está de volta e a luta contra a fome no mundo está de volta.

As opiniões expressas neste artigo são do próprio autor e não refletem necessariamente a posição editorial da Al Jazeera.

Fonte: www.aljazeera.com

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